sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Releitura, Cotidiano moderno (feminino)


Todo dia ela faz tudo sempre igual

Acorda as sete horas da manhã
Arruma os cabelos e faz um Selfie matinal
Junto à sua tapioca de maçã

Todo dia ela posta que vai "treinar"
e essas coisas que faz toda mulher
Chega na academia e tira foto antes de suar
para colocar a foto no Tinder

Todo dia ela pensa no que vai almoçar
considera um restaurante bonito e Vegan
Depois pensa em como vai compartilhar
e decide um filtro para colocar no Instagram
Seis da tarde como era de se esperar
ela acessa o App de pegação
Diz que está muito louca para beijar
e fica a procura de um mozão

Toda noite ela diz que não vai prestar
Dez da noite ela se deita no sofá
Liga o netflix para uma série acompanhar
Mas já são meia noite e ela não decidiu o que verá

Escrito por
Felipe Juventude
Para todas as mulheres
que aliaram o culto a beleza
as suas redes sociais

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Puposo

Dia X
Os peritos vasculhavam toda a casa; seja lá o que procuravam, não estava lá. Não havia sinal de arrombamento, digitais estranhas, violência. Apenas fatos; os pertences em seus devidos lugares e um corpo. O laudo do IML não tarda a chegar, a denúncia foi feita há aproximadamente 24 horas. O que justifica a tamanha importância dada ao caso pela Polícia Federal não é a identidade do sujeito que atingiu o óbito. Alfredo era relativamente importante, mas nunca esteve na mídia e nem fazia parte dela. A justificativa para a eficiência acerca do caso é um caso clássico de contatos de um dos interessados do incidente. Não é mais um assassinato, um latrocínio ou uma tentativa de reação a assalto que acaba em tragédia. Nada extraordinário, apenas incomum. Abriu o laudo e...
Asfixia..?

Dia X-1, hora Y PM
Outra vez ele não me atende. Já não sei quantas foram as chamadas perdidas ou ignoradas que já fiz nos últimos dez minutos. Tínhamos um compromisso verbo conjugado no passado mesmo. A essa hora não tem muito jeito, se depender do trânsito caótico do Rio de Janeiro não vou nem ver o buquê sendo jogado pela noiva. Não posso aparecer lá sozinha, convites de casamento são sempre valiosíssimos, se chegar lá sozinha serei fuzilada por olhares de todos que possuem ciência de que eu tinha dois convites, um para mim e outro para meu namorado. Vão olhar para mim e pensar imediatamente em alguém que poderiam ter chamado. Provavelmente vou quebrar uma perna ou duas só por culpa de olho grande.

Mas antes tarde do que nunca. Disco os números no celular e tento de novo. O telefone chama e chama. O táxi que pedi chega, dou boa noite ao motorista, falo o endereço dele, a ligação continua sem um misero "Alô" amigável no outro lado da linha, apenas o seco tom da vadia — no momento atual de stress, todas são vadias— da atendente automática me direcionando a deixar uma mensagem na caixa de mensagens em tempo recorde só para que eu pague a taxa após o sinal. 

Não quero deixar uma mensagem na caixa de mensagens, nem na de sugestões nem na caixa do caralho. Outra chamada perdida. Perdida também está minha paciência, se não tiver acontecido algo muito sério vou ligar para o meu pai — chefe da PF— e mandar ele dar uma dura no Alfredo. Ligo mais uma, duas, três vezes. O táxi chega ao destino. O trânsito parece suportável, com sorte não nos atrasaremos  para a festa. Pago o táxi e agradeço pelo serviço. Meus problemas não precisam ser descontados no tal taxista.

Digito o interfone furiosamente. No segundo chamar, vejo o Seu Paulo, senhorzinho gente boa porteiro do prédio do Alfredo. Gosta de conversar. Mas tempo de conversar não é algo que eu tenho agora. Estou com pressa. Pergunto rápido antes que ele pudesse começar a falar da filha ou do cachorro de alguém que mora em algum andar do prédio: —Boa tarde Seu Paulo, sabe se o Alfredo está?— Ele disse que sim, agradeci e fui em direção ao elevador o mais rápido e simpática possível.

Entro no elevador e sem mais delongas apertei o dez. Então o safado está em casa. Segundo andar. Aposto que largou o celular em algum canto e foi dormir um pouco. Terceiro andar. Quando digo um pouco falo de sono profundo. Quarto andar. Afinal de contas nos falamos hoje de manhã. Quinto andar. Lembrei-o do casamento, das horas, do trânsito, da importância de estar bem arrumado, — Sexto andar fomos até comprar uma roupa esporte-fino para ele, as que ele tinha eram do pai dele, —Sétimo andar estavam em cacos e não tínhamos tempo para restaurar ela. Oitavo andar. Sorte que tenho a chave do apartamento dele, — Nono andar— se não ficaria igual a uma louca apertando a campainha. Décimo andar, a porta abriu, vou em direção a porta procurando a chave. Chego em frente a porta, encontro a chave,  boto-a na porta e giro. ALFREDO SEU FILHO DA PUTA É BOM VOCÊ ESTAR PRONTO, RICO E COM UMA BELA DESCULPA, dizia enquanto abria a porta, SE NÃO VOCÊ É UM HOMEM MORTO.
...

O que Carmen encontrou foi algo desesperador. Sentiu-se culpada. Não sabia das ironias do destino, começou a chorar, ligou para o pai, a mãe dele, para os amigos, desesperou-se e continuou a chorar. Apesar de toda a tristeza ainda havia um ponto positivo em toda essa história que ela jamais perceberá pelo simples fato de ser humano. A probabilidade dela se sentir tão mal ou pior do que naquele dia por falar coisas sem pensar é mínima agora.


Dia X-1, Hora Y A.M.
Desligou o telefone. "O dia vai ser cheio", pensou calmamente. Há dez anos conhece Carmen, mas parecia que ela falava sobre o tal casamento desde o dia em que Alfredo saiu do ventre da mãe. "Alfredo, já tem uma roupa?" "Alfredo, compra um perfume novo." "Alfredo, que terno é esse? Você precisa de um novo." Mas já não faz diferença, hoje a tortura finalmente acaba para o pobre Alfredo. Ele adora festas de casamento, mas achou que só fosse ter tanto trabalho uma vez: no próprio casamento, e não toda vez que alguém for se casar. Teria que cortar o cabelo e fazer a barba antes de poder descansar até a hora da festa. Normalmente ele faria tais coisas no próprio banheiro, na paz do lar, mas tinha certeza que se fizesse algo errado Carmen jamais o perdoaria. Indo ao barbeiro tem ao menos um plano de contingência. Alguém para culpar.

Saiu calmamente de seu apartamento, desceu de escadas. Gostava de pensar nisso como "um pequeno resquício de vida saudável". Leu em alguma coluna do jornal de domingo que subir e descer escadas fazia bem ao organismo e de algum jeito ajudava a manter o fôlego, então sempre descia de escadas. Mas só sobe elevador. Subir dez andares, ou 30 lances, de escadas não é para qualquer um. Se um dia desistisse de seu emprego e virasse atleta, certamente subiria as tantas escadas todos os dias, mas enquanto não é. Só desce mesmo.

Encontrou Seu Paulo na portaria, o cumprimentou e escutou suas histórias; era um senhor sozinho. Alfredo já escutou sobre a falecida mulher, sobre os filhos e netos, já grandes e trabalhadores, mas definitivamente o hobby do Seu Paulo era comentar sobre os cãezinhos das madames que moravam no condomínio, pareciam dar mais alegria a ele do que as próprias donas, pessoas estranhas. Quando se deu conta do tempo que passou, pediu desculpas e foi em direção à rua, ainda tinha que aparar os pelos e passar numa farmácia, tinha de comprar um perfume para a ocasião, afinal de contas, sempre foi galanteador e acha que ao se arrumar mais do que Carmen espera a fará feliz.

Cortou o cabelo e aparou a barba no barbeiro. Tomou um café pingado no caminho, não é um hábito sair de manhã de casa, mas sempre que fazia isso, se aproveitava para tomar um pingado com um pão na chapa na padaria. Não era mais o café da manhã mais barato da praça e mesmo assim ainda um dos mais gostosos. Tateou os bolsos em busca de sua carteira e deu falta de algo. Tudo que era importante estava lá: sua chave e carteira. É sempre importante ter como entrar e sair de casa, ainda mais quando a consequência direta de esquecer isso é uma tarde de stress com um chaveiro cobrando órgãos internos para você poder entrar em casa. E sua carteira, abriu-a, pegou uma nota de dez e entregou à caixa, torcendo silenciosamente para receber algum troco. Enquanto esperava olhou para dentro de sua carteira, algum dinheiro, cartões de crédito, uma foto de seu amor, a identidade e...

CARALHO. CADÊ O CELULAR? Recebeu o mísero troco, agradeceu o serviço, pensou calmamente onde poderia estar o celular enquanto ia em direção ao barbeiro. Remontou seu dia enquanto perguntava se alguém havia visto seu celular na região, pensou em o quanto ia ouvir a noite por cada ligação perdida de Carmen. Respirou fundo, entrou na farmácia, comprou o perfume, um desodorante spray, um xampu colorido que parecia ser caro o suficiente para deixar seu cabelo bom. Respirou aliviado, lembrou-se de que ao sair de casa jogou o celular no sofá e se concentrou nas escadas. Sempre compra o xampu junto com o condicionador, parece ser sempre uma boa ideia, mesmo que aqueles potes se acumulem no banheiro até Carmen os levar todos para casa.

Chegou em frente ao prédio, abriu a porta, cumprimentou o Seu Paulo de novo, dessa vez sem muita paciência para conversar, o stress do celular o esgotou. Entrou no elevador, subiu os andares, destrancou a porta de casa, largou as compras em cima da bancada da cozinha, se jogou no sofá e cochilou.

O que ele não sabia é que tudo poderia dar errado e que ele dormiu um pouco mais do que o cronograma. Teve um sonho estranho e confuso, onde tinha uma multidão enfurecida gritando, mas isso não era tão estranho. Multidões enfurecidas gritam mesmo, estranho era o que elas gritavam, era como um coro polifônico de uma música de Zezé di Camargo que Alfredo até gostava, mas não era o tipo de coisa que acontecia todo dia. Abriu lentamente os olhos, seu celular tocando SEU GUARDA EU NUM SO VAGABUNDO em beeps. Carmen o ligava, o número de chamadas perdidas? Muitas.

Viu a hora, não era exatamente tarde, ainda dava tempo de se arrumar e ligar para ela. Se ligasse agora certamente seria um homem morto, preferia deixar ela mais cinco minutos desconsolada e ligar falando:"Estou no trânsito, buzino quando estiver na sua porta. A polícia tá na esquina, beijos." do que ligar agora e ter de ouvir muito enquanto se arrumaria de maneira apressada.

Está frio, fechou a janela e a porta do banheiro, ligou a água quente do banheiro e foi buscar as compras na bancada da cozinha. Entrou no banheiro e sentiu-se aquecer, o vapor já gracejava o ambiente. Pegou seu xampu e condicionador entrou debaixo do chuveiro e tomou banho. Ao fim já havia muito vapor no ambiente, não se importou, afinal de contas, isso que faz o calor de um banho quente se estender por todo o banheiro. Secou-se, pegou o desodorante novo e apertou para sentir o cheiro. Cheiro forte, encheu o ar. Tonteira, não conseguia respirar, algo estava errado, o desodorante não parava, muita fumaça no ar. Botou o desodorante de volta na pia, sentiu-se sufocado e desmaiou.

Dia Z, Cartório
Lá estavam Carmen e seu Pai, assinando o óbito do Alfredo. Em causa da morte ela não sabia o que botar. Seu pai, um homem de meia idade, chefe da PF tomou a frente da situação e como uma piada de humor negro com péssimo timing do jeito que apenas senhores de meia idade são capazes de fazer e disse: "Ponha ai Suícidio puposo, quando não há intenção de matar."